o anarquista de bagé
Jomar Morais - Revista Vida Simples
(Superinteressante)
junho/2002

Um gaúcho provoca furor e êxtase ao retomar o trabalho do polêmico Osho. Sua proposta: mostrar às pessoas que elas estão completas e só lhes resta seguir os seus impulsos.

Os olhos negros, penetrantes, concentram nos meus e parecem disparar faíscas de um desejo misterioso. Hesito, mas logo decido ir em frente, devolvendo àquele que me observa um olhar igualmente destemido. Por alguns minutos permanecemos assim, olho no olho, mudos e indiferentes ao significado simbólico de nossas posições – ele e sua bata branca acomodados na poltrona azul rechonchuda; eu, um nível abaixo, pernas cruzadas, sentado no chão. Dezesseis pessoas, esparramadas sobre colchonetes, nos observam. Apenas a brisa do Atlântico rompe, de vez em quando, o silêncio e o calor abafado. Então, a voz do guru explode:

-Quem é você?

Quem sou eu? Quem sou eu?, repito nas profundezas da mente para, depois, responder:

- Não sei.

Quem é você? – torna a dizer o guru, incisivo, enquanto justifico que nenhuma definição de mim mesmo poderia retratar a essência do meu ser.

Leve sorriso... sinto que eu e o mestre sintonizamos, mas a harmonia é fugaz. Uma saraivada de perguntas que abalroam conceitos basilares como individualidade, livre arbítrio e evolução nos põe no centro do ringue, menos por minhas discordância ou concordância a priori com suas idéias do que pela insistência para que eu abjure minhas concepções e me transforme ali mesmo. Experiência zero, este é o alvo: atingir o ponto onde você está em lugar nenhum, onde é ninguém, sem nome, identidade ou forma. Samadhi, a suprema percepção, a iluminação além da mente!

Mais perguntas. Uma crescente pressão por respostas. O guru, finalmente, encerra:

- Não há busca, não há caminho, não há método. A iluminação é aqui e agora. Nada é tudo o que você tem a fazer. Renda-se!

Surpreso e curioso, caro leitor? Isto é um satsang com Swami Satyaprem.

Satsang é um termo do sânscrito, a língua clássica da Índia, que significa encontro com a verdade. É como se chama o ato dialogar com um sábio. Swami, outra palavra sânscrita, quer dizer mestre de si mesmo e satyaprem, amor pela verdade. Eis o homem. À minha frente, em meio aos jardins de uma pousada em Maracaípe, praia vizinha à famosa Porto de Galinhas, em Pernambuco, está um iluminado. E por trás de seu nome simbólico a figura de um gaúcho de Bagé, quarentão de aparência juvenil, polêmico e iconoclasta, que há 20 anos descartou a carreira jornalística para seguir os passos de um guru para lá de controverso: Bhagwan Shree Rajneesh, ou simplesmente Osho, um indiano morto por enfarte em 1990.

"Satsang com Satyaprem é porrada", diz Maurício, um dos 17 interessados que pagaram 340 reais para conviver com o mestre gaúcho durante três dias. Estavam lá profissionais liberais, militares, comerciantes, militantes de esquerda e até adolescentes de 15 e 17 anos. Um extrato da classe média habituada a buscar um sentido para vida em vertentes filosóficas ou no divã do psicanalista. Gente devota ou perplexa diante de um guru de palavras e práticas demolidoras. Em colóquios anteriores, confidencia Maurício, muitos amarelaram diante de, digamos, alguns exercícios sensoriais desinibidos. Dessa vez, o impacto ficou só na retórica. "A priori, sou a favor de tudo", diz Satyaprem. "A favor do aborto, da eutanásia, das drogas..." O guru de Bagé, acreditam alguns de seus discípulos (sannyasins), superou o mestre.

Nos anos 70, Osho instalou o comando de seu movimento no Oregon, Estados Unidos, e dali ajudou a sustentar a revolução de crenças e costumes, iniciada pelos jovens. Sua pregação envolvia sutilezas herdadas do Zen Budismo, mas, polêmico e exibicionista, o indiano acabou rotulado como o guru do amor livre, por sua ênfase em tradições esotéricas que consideram a realização espiritual também por meio da liberação do sexo. Milionário, adorava desfilar sua coleção de automóveis Rolls Royce. Em 1985, Osho foi expulso dos Estados Unidos, acusado de forjar casamentos para garantir a permanência de estrangeiros em sua comuna. Ao voltar para a Índia, não teve tempo de reorganizar seu império. A morte prematura do guru provocou uma guerra de poder entre discípulos e assessores, atiçada até hoje por um patrimônio constituído de imóveis, 1 500 livros publicados em 40 idiomas e, claro, a frota de Rolls Royce.

No vazio de liderança, discípulos de ontem tornaram-se gurus, com idéias e estilos próprios – e nessa constelação Satyaprem é uma estrela de brilho inquietante. "O iluminado não recorre a ensinamentos do passado. Aliás, não há nada a ser ensinado, mas apenas o compartilhar de algo vivo, não aprendido", afirma. "O buda é quando a mente pára de tentar provar que você não é o buda. Ela reconhece o revelado e se aquieta". O instrumento utilizado para despertar as pessoas para essa experiência fundamental é uma técnica de auto-indagação criada pelo guru Ramana Maharshi. Perguntas, muitas perguntas. Lembra do nosso duelo no início desta reportagem? É isso.

A resposta que encontrei para a indagação do guru é a mesma que foi dada há mais de vinte séculos por Bodhidarma, suposto fundador do Zen, ao imperador chinês Wu, então enfurecido ante a recusa do monge em prestar-lhe homenagens. "Quem é você para me dizer essas coisas?", indagou o imperador. "Não tenho a menor idéia", replicou Bodhidarma. Não sei é também a resposta a que Satyaprem pretendia conduzir-me, a fim de me convencer da falsidade do "eu" e da verdade da essência na unidade da Consciência Cósmica.

O trabalho de Satyaprem é solitário. Depois de, segundo ele próprio, viver em comunas de Osho nos Estados Unidos, Índia, Holanda e Alemanha e de fundar um centro de meditação na Noruega, desde 1994 Satyaprem tem se dedicado a realizar retiros e satsangs nos estados do sul e do nordeste (em 2002 pretende entrar em São Paulo), sempre à margem do movimento organizado dos seguidores de Rajneesh. Militante anarquista na juventude, o guru detesta estruturas e normas e se recusa a informar o próprio nome civil, por não reconhecer nesse detalhe qualquer importância. Sobre sua vida familiar, uma única concessão: diz que é filho de comerciantes. "Como disse Cristo, quem eu sou não tem mãe nem pai", justifica.

Foram os estudos de psicologia e semiologia que aproximaram Satyaprem das idéias de Osho, mas a gota d´água nesse processo, acredita, foi a hipocrisia social. Usuário de maconha na juventude ("Usava-a como microscópio para me ver melhor, em momentos de introspecção"), ele resolveu transformar seu trabalho de final de curso, na PUC de Porto Alegre, numa elegia à droga e acabou discriminado pelos próprios amigos. Vem dessa época o rótulo de maldito, que volta e meia atravessa o caminho do guru. Satyaprem não liga. "Por que será que assassinaram Jesus, Sócrates e outros?", diz. "O contato com o iluminado é sempre algo devastador."

Sua proposta é radical. Primeiro, destruir os conceitos daquele que busca; depois, mostrar que não há busca, que não há para onde ir. É a "terapia da porrada, trabalho forte, de catarse", afirma a jornalista Francisca Campagna, que assina o prefácio de "Fragmentos de Transparência", o livro em que Satyaprem resume sua filosofia. Para ele, a vida é uma brincadeira divina, onde tudo pode e nada deve ser levado a sério.

"Satyaprem segue os seus impulsos. Não descarta nenhuma oportunidade de ser carinhoso, assim como não a de se irritar, sem perder o senso de quem ele é", revela Maria Karla Ferreira, a sannyasin Sonika, de 22 anos. É namorador (e contra o casamento), bom garfo, apreciador de noitadas em boates. Costuma também passar horas quieto, lendo ou simplesmente dormindo.

Estou curioso para saber o que pensa do Dalai Lama, o líder do budismo tibetano que, nos últimos anos, tem seduzido milhões no ocidente. "Um político, o chefe de uma religião", dispara. O Dalai propõe a transformação das emoções. Satyaprem, vivenciá-las do jeito que brotam na brincadeira da vida, sem nenhum julgamento. "Aceitação é a suprema compaixão", diz, referindo-se à virtude pregada em todos os livros do Dalai. E o que acha dos psicoterapeutas, de cujos consultórios parte a maioria de seus ouvintes? "São os novos padres que reforçam as ilusões criadas pela mente". É porrada.

No final, Satyaprem exibiu o filme "O Ponto de Mutação", baseado no livro de mesmo nome do físico Fritjof Capra que propõe um novo paradigma para a ciência e a filosofia, apoiada nas descobertas da física quântica. A realidade está na mente do observador. O universo é uma teia de interconexões. "Não há o 'eu', nem livre arbítrio, nem evolução. Não há passado nem futuro. Não há senão o aqui e agora. Isso é científico, isso é qüântico", diz Satyaprem. Isso é assim, se lhe parece.