iluminação
Marcelo Ferrari - Caneca na rede
Novembro/2005


Olá Satyaprem, não podia perder a oportunidade de começar com esta pergunta: quem é você?

Não tenho a menor idéia!

Satyaprem, você pode afirmar que é um iluminado? Por que? No que o estado de iluminação difere do estado de não-iluminação?

Não posso nem afirmar, nem negar. Quanto ao estado, eis onde este diálogo fica obscuro. As perguntas feitas são reducentes. Iluminação não é um estado. Como uso dizer, é um país inteiro, um planeta, um universo. Todos os estados acontecem e desacontecem no silêncio realizado, na luz. E ademais, aponta para a realização de que não há um eu/identidade. A qual em ausência não é nem uma coisa nem outra, não pode ser, por não ser existencial. Assim, não há eu iluminado. Não há eu. Isso é iluminação. Que é a natureza de todos. No entanto, a diferença repousa na realização. A maioria ignora.

Satyaprem, suponho que você usou a palavra "realização" com o significado de "constatação" e em oposição à idéia de ignorância. É isto? Suponho, então, que iluminação é a constatação de que eu-não-existo e a não-iluminação é a ignorância desta verdade? É isto? Se for, minha pergunta é: se eu-não-existo como eu posso constatar minha não-existência?

Pois, não é você quem constata. Há a constatação sem constatador...
Por isso, r-e-a-l-i-z-a-ç-ã-o.

Satyaprem, suponho que você chegou a esta realização sem um realizador e foi assim que teve fim a sua busca. Mas já que começamos pelo fim, vamos voltar ao começo. Quando, como e porque começou a sua busca? Conte-nos os acontecimentos que o levaram a buscar. Narre os primeiros passos de sua busca.

Você tende a sinonimizar real-em-ação e consta-t-ação. No constar significa estar-em, dentro de, portanto, daria para entender que o real está dentro da mente que tem o mapa, consta na mente... No real-em-ação, o avesso fica evidente, a mente e seus mapas estão no real - e notáveis como irreal. O foco mudou sem alguém que o tenha mudado. A mente não entende... ou entende? A busca começa com a sensação de inadequação. Descontentamento nas relações com o mundo. Como mudar o mundo fica impossível, fica claro o mudar a si mesmo. Eventualmente o si mesmo revela-se ilusório. Ploft!

Primeiros passos da busca: meu pai levou minha mãe num pic-nic. Fui com ele, voltei com ela. Entre milhões de espermatozóides um encontrou o óvulo. Ou será o óvulo que escolheu? De qualquer forma, a busca é vida. Somos buscadores mesmo sem sabermos... O desenrolar dessa busca é inevitável. Tanto o buscar quanto o encontrar. Uns encontram no começo, outros no meio, outros no fim. Mas todos encontram. O um não se divide nunca, embora pareça. Fatos, eventos, tornam-se superficiais. Deixemo-los para a revista Caras. Brevemente: drogas, espiritismo, umbanda, psicologia. Descontentamento. Osho veio como a resposta: meditação. Não como fim mas como meio.

Satyaprem, você disse que Osho veio como a resposta: meditação. Mas qual era a pergunta? Outra coisa, o que você quer dizer quando declara "não como fim mas como meio"?

A pergunta: quem sou eu? Não como fim mas como meio. A meditação é meio. O fim está fora das mãos nossas...

Ou seja, só a meditação é capaz de responder a pergunta "quem sou eu?", é isto? E você diz que a meditação é o meio, porque é através dela que se chega a resposta. É isto?

A meditação prepara. O fim não está nas nossas mãos.

Satyaprem, se o fim não está em nossas mãos, o que está? Outra coisa, quando se fala em "meditação" as pessoas geralmente imaginam um monge sentado naquela posição desconfortável por horas tentando pensar em nada. É sobre isto que você está falando? Se não for, sobre o que você está falando quando fala em meditação?

A mente tende a encontrar contradições, naturalmente. Nem o fim nem nada está em nossas mãos. Mas ao contar uma história que parece linear, linguisticamente usei a palavra fim para explicitar o que aconteceu, o desfazer do sonho não pode ser provocado pelo sonhador... Embora ele possa sonhar que acordou. No meio, meditando, parece que estamos fazendo algo para acordar. Mas nada pode ser feito, embora tu devas fazer... Quanto a meditar: a versão monge sentado é a mais conservadora possível. Conta-se do mestre entrando no salão de meditação e encontrando o mais dedicado monge sentado. "O que estás fazendo?"- perguntou o mestre. Tentando tornar-me um buda." - foi a resposta. O mestre foi ao pátio, catou uma telha, voltou ao salão, sentou-se ao lado do monge e passou a raspar a telha com uma pedra. O barulho provocou o monge que disse: "O que estás fazendo?" Ao que o mestrinho respondeu: "Fazendo um espelho". "Como? Esfregando essa porra dessa telha? Deixa de ser babaca, isso nunca vai virar um espelho!"- diz o dedicado meditador. O mestre então retorquiu: "Isto é o que eu gostaria que tu vistes! Tu nunca vais te tornar um buda sentado aí!"

Então, o que você está dizendo é que meditação = auto-observação? É isto? Outra coisa, como ensinar alguém a meditar?

Sim, no entanto, meditação enquanto método, que pode ser ensinado/aprendido, é preparação para auto-observação. Prepara o terreno. Existem métodos para isso, Osho deixou vários. No entanto meditação não é aprendida, é um desaprender daquilo que a sociedade te ensinou. Quanto mais vago disso, mais meditação. Isso pode também ser visto como a presença da observação na vida de alguém. A Consciência da observação. Um pós-método... O terreno preparado. Preparado para quê? Para a possibilidade do sumiço do fazedor! Vulgo iluminação.

Satyaprem, suponho que nos cursos que você oferece, você prepara o terreno para os participantes. Qual é o metódo que você usa para isto? Outra coisa, conte como foi a preparação do terreno para você mesmo. Quem preparou? Como preparou?

Cursos? Bah! não preparo o terreno. Planto flores nas pedras. No meu caso: Osho, Osho, Osho! Meditação Dinâmica, vida, dinâmica, vida, etc.

Satyaprem, fale sobre plantar flores nas pedras. E fale sobre a meditação Dinâmica.

Quem tem olhos para ver, ouvidos para ouvir... Enquanto isso, joga-se pérolas aos porcos.

Satyaprem, fale sobre Osho. Você o conheceu? Se relacionou com ele? Como foi esta relação? Qual a sua importância? Por que?

Não há relação. O encontro com um mestre te joga de volta para ti mesmo. Não aquele que tu pensas que és, mas aquilo que vês nele, como sendo ele, eventualmente, se houver graça, serás tu. É um espelho. Osho não é uma pessoa, mas a realização do Silêncio, presença incorporea extendida ao infinito. Todos os lugares, todos os tempos...

Satyaprem, no seu site está dizendo que você esteve com a iluminada alemã Dolano, na Índia, onde reconheceu o fim da busca. O que aconteceu na Índia? Fale sobre Dolano. Fale sobre este acontecimento que culminou com o fim da sua busca.

Veja, Ferrari, a dificuldade aqui reside em falar do infalável. A mente no seu mundo privado, feito de imagens e palavras, num infinito mar de espelhos, tende a projetar-se em tudo. Uma árvore não é uma árvore porque a mente diz que é uma árvore. Então o que é uma árvore? Um mistério. A mente não gosta nadinha disso. Porque no não-ambiente do místico, as palavras valem nada em si. Se, no entanto, são vistas como placas de apontamento, direcionamento, então validam-se temporariamente. Não tem valor em si. Assim, a mente tende a entender que uma pessoa que "parece" com a pessoa que eu sou (que eu, mente, acredito que sou), é como eu. As pessoas são pessoas porque a mente diz que elas são. Se eventualmente, essa "verdade" se rompe, uma outra realidade aparece. E nessa realidade, a realidade da mente fica irreal. Por isso, os iluminados dizem que as pessoas estão sonhando. Esse sonho é passado de pai para filho desde sempre. Nessa história, há o evento chamado mestre, que através de palavras ou não, aponta para aquela outra realidade. Uns buscam isso conscientemente. Outros não. No encontrar, no fim da busca, dissolve-se o sonho. Acorda-se! Quem acorda? Ninguém! Que acontece? Nada! A mente não tem como entender. O sonho some, fica o que sempre foi. As árvores agora parecem ser árvores, mas não são... O que será que elas são? A mente jamais saberá. Aquele que quer saber, saberá quando souber quem ele é. Pois tudo no universo, é ele mesmo. Não o conteúdo da mente, experiências, memórias, mas o indescritível mistério, aqui e agora!

Satyaprem, a próxima pergunta é sobre Karma. Qual é sua visão sobre esta questão?

Não vejo nada. Talvez uma forma digna, bem intencionada, de impedir, através do medo, que os seres humanos (?) comam-se uns aos outros. Que não funciona. Eles continuam sua devora...

Satyaprem, você considera que a vida tem leis que regulam o comportamento de suas criações? Leis como as que determinam, por exemplo, que tudo que nasce deve morrer? Sim, não? Por quê?

Obviamente existem leis naturais. Claro que a mente gostaria que algumas coisas não morressem, outras não vivessem, outras nem nascessem. A vida não tá nem aí! Fazendo o que quer na maior zona. De onde as estrelas nascem... Sim. Não. Por que? Por que sim. Por que? Por que não?

Satyaprem, você considera importante ter consciência das leis da vida? Por quê? Você considera que a palavra Karma aponta para uma lei da vida? Pra lei de ação-reação?

Sensivelmente. É importante parar no sinal vermelho, não tomar ácido sulfúrico, etc. Mas é relativo, não é mesmo? Depende do propósito. Importante mesmo é conhecer-se a si mesmo. De dentro disso emerge uma sabedoria que nunca vai ser emulada pela mente, que insiste no acúmulo de conhecimento. O karma, insinuado como lei de ação e reação, regula o visível e/ou imaginado. No entanto, é cartesiano demais. Será que a reação foi causada pela ação, ou foi a reação que causou a ação para poder acontecer...? A mente impõe seus limites ao ilimitado. Mas é risível! What the fuck does the mind know?

Boa pergunta, Satyaprem: What the fuck does the mind know? Do you know? Você disse que a mente impõe seus limites. Que limites são estes? Como a mente os impõe? Porque os impõe? Ela os impõem a quem? Fale a respeito.

A mente não sabe. Quem sabe? Quem sou? A mente impõe seus limites a si mesma. Enquanto eu estiver identificado com ela, os limites são meus. No momento que não houver mais essa identidade, não mais sou limitado. Sou o ilimitado. A mente impõe os limites pensando. Quem sou? O que quer que seja que tu penses que eu sou, não sou. O que quer que tu penses que tu sejas, não és. Mas se o pensar fica visto como real, és o que pensas que és. Se não, o pensado não é você, você é aquele que observa o pensar. Se você pensar que é o observador, você não é. Você é o pensador. Não pensa e diga-me: quem é você?

Satyaprem, fale sobre o sofrimento. Muitas pessoas buscam terapeutas, mestres, religiões como forma de se verem livres do sofrimento, o que você acha disto? Suponho que as pessoas que vão aos seus cursos também buscam que você as ajude a se livrarem de seus sofrimentos. Como você lida com isto?

Faz parte do drama humano. Mas sofrimento não vai ser erradicado, sem antes sabermos quem sofre. A pergunta que a mente quer evitar. Sofrimento é quando não há aceitação do que é, do que está posto. Sofrimento então é um conflito entre o que a mente gostaria que fosse e o que está sendo. Se existe esclarecimento, o que é, é reconhecido como fato, há entrega ao momento. Essa entrega em reconhecimento tem fonte num vislumbre mínimo de que você não é a mente, mas aquilo que observa. Há paz.

Cursos? Não. O propósito não é livrar-se do sofrimento. É ver o que ele é. É ver quem sofre. Nessa investigação elucida-se a ilusão. Não há sofrimento... É uma invenção da mente. E sempre se a procura for exata, não livrar-se do sofrimento, mas ver a fonte do sofrimento, a possibilidade está aberta. O beco sem saída para a mente, no entanto, é que para livrar-se do sofrimento, tem-se que livrar-se do sofredor... e o sofredor não é suicida. Ele não quer se livrar dele mesmo. Nem pode. Ele se preserva na idéia de um dia haver um lugar em que o sofrimento não entra. O paraíso. Quem é você?

Satyaprem, se você estivesse no meu lugar, entrevistando o Satyaprem, e esta fosse sua última pergunta, que pergunta você faria a ele?

Quem é você?

E se você fosse ele, o que você responderia?

Se eu fosse o Satyaprem, responderia: Não tenho a menor idéia! E se você fosse eu, o que você responderia?

Aquilo que não pode ser visto, aquilo que não pode ser ouvido, aquilo que não pode ser tocado, aquilo que não pode ser cheirado, aquilo que não pode ser provado, aquilo que não pode ser pensado, nem imaginado. Aquilo que vê. Aquilo que está além das palavras... Como o velho santo Gautama de Buda, aquele que todos veneram, disse, respondendo uma pergunta de seus monges: "Se quiserem saber 'quem é você', não podem usar os seis sentidos". O sexto sendo o pensar, o imaginar...

Satyaprem, porque você concordou em conceder esta entrevista?

Para que as pessoas possam entrar em contato com Aquilo...

Satyaprem, entrevistador e entrevistado passarão, a entrevista passarinho. Assim, o que você gostaria de deixar registrado aqui, do fundo do seu coração, para os olhos que pousarem nesta entrevista um dia?

Além de tudo que já foi deixado, você não é quem você pensa que é! Quem é você? Como diz o Osho: "O buscador está fundamentalmente enganado. Ele aceitou que perdeu o divino, ou ainda não o encontrou, que Deus está em algum lugar distante e deve ser achado. O divino nunca é encontrado pelo buscar. Buscando e buscando você aprende que não há nada no buscar. Enquanto busca, um dia o próprio buscar cai. Tão logo a busca cai, o divino é encontrado. (...) O divino vive dentro de você."

E também do Osho: "Eu ensino a você o simples. Eu ensino a você o natural. Eu ensino a você que você está onde você tem tentado chegar, exatamente no lar. Não desperdice seu tempo correndo para cá e para lá. Mas sempre te disseram para que você se torne algo, alguém - é por isso que todas as religiões estão contra mim, todos os moralistas estão contra mim. Eu posso entender, porque se eu estou certo, então todas as tradições e todos os ensinamentos que têm levado a humanidade em direção a alguma meta distante se provam absolutamente criminosos. Porque eles têm tomado das pessoas a chance de viver, a chance de amar, a chance de cantar, a chance de dançar e, de uma forma mais definitiva, a própria oportunidade de sentir o divino no aqui/agora."